segunda-feira, setembro 04, 2006

História da igreja da Santa Casa da misericórdia de Peniche

por : Fernando Engenheiro
A casa que servia de hospital da Confraria do Corpo Santo de Peniche foi entregue à irmandade da Santa Casa de Misericórdia pouco tempo depois desta criada, para continuação das funções ali exercidas, passando também para a nova Instituição toda a responsabilidade pela sua administração.
Nas obrigações daquele pio estabelecimento estavam abrangidas as 14 Obras de Misericórdia, divididas em igual número como corporais e espirituais.
Havia que dar cumprimento à vontade de Deus e a alimentação do espírito incluía o sufrágio das almas, Não podemos esquecer que o sufrágio dos almas era considerado uma das Obras de Misericórdia mais importantes.
Salvar a alma ara mais importante que o corpo - e a imponência das cerimónias era prioritária na mentalidade da época.
Assim, logo após a sua constituição, a Santa Casa da Misericórdia de Peniche apressou-so a escolher um terreno que lhe servisse para edificar Casa de Deus, a sua Capela. A escolha recaiu num terreno, então ocupado por um armazém, que ficava contiguo ao edificio do hospital em causa.
Tinha como confrontações: pelo nascente o seguimento da rua do Palha (documento de décimas de 1609)-actual rua 13 de infantaria, do Sul a travessa da Palha, que também, foi conhecida pela do Conde, do Poente o então largo do Corpo Santo e do Norte o proprietário.
Este armazém servia de depósito de mercadorias e produtos vindos do Brasil e da Africa, trazidos pelas caravelas de Peniche. Na zona existiam outros armazéns onde se guardavam também, conforme o topónimo indica, grandes quantidades de palha.
Logo que foi eleita a Mesa da irmandade da Misericórdia em 2 de Julho de 1627 (dia de Santa Isabel, prima da Virgem Maria)-em que tradicionalmente se celebrava a festa de Nossa Senhora da Visitação - imediatamente se iniciaram as obras de construção do templo.
No começo não houve grandes dificuldades na construção, pois que a referida irmandade, que foi criada com base na irmandade do Calvário, recebeu desta todo o seu património e rendimento, podendo, assim, com mais facilidade atingir os fins a que se propunha.
E logo se seguiram outros rendimentos com a entrada de novos irmãos, acompanhamento dos funerais e inumações em lugares de destaque, bem como os resultantes das importâncias dadas em acção de graças pelo bom sucesso de viagens do Brasil, Arguim, Ceuta, ilhas e de outros locais.
Mesmo assim para a primeira fase acabou por haver necessidade de recorrer ao empréstimo de 45.000 reis, cedidos, a título de empréstimo, por 11 irmãos que, naquele periodo de 1627/28, estavam à frente dos destinos da instituição.
Neste número estava incluído o 4° Conde de Atouguia e Senhor de Peniche D. João Gonçalves de Ataíde, que exerceu as funções de Provedor no período compreendido entre 1626/28.
Havia a intenção, ou talvez uma obrigação, de seguir o risco da edificação da Misericórdia de Lisboa, tentando-se urna identidade de actuações tão próxima quanto possível.
Em pouco menos de 2 anos, nos fins de Dezembro de 1629, embora não estivesse completa toda a cobertura, já a parte do altar-mor estava pronta à celebração da eucaristia.
Recebeu na mesma altura a sagração e foi chamada igreja, embora as obras tivessem durado até 1634.
Nos anos de 1637/38, para que o altar mór fosse “privilegiado”, foi obtida uma bula do Papa Urbano VIII.
Na mesma época foi colocada no pedestal a Imagem de Nossa Senhora da Visitação, como orago daquela igreja. A festa em honra de Nossa Senhora da Visitação, celebrada tradicionalmente a 2 de Julho (actualmente em 31 de Maio) que foi sempre considerada como o Dia das Misericórdias.
Os Provedores e Mesários tomaram Nossa Senhora, no passo da sua visita a Santa Isabel, como Nossa Senhora da Disponibilidade, do Serviço, de Urgência, da Solidariedade, do Atendimento, pronta a quem mais precisa.
A Mesa, sendo Provedor o Capitão Domingos Franco Cochado, com a sua equipa, Bartolomeu Paixão (escrivão), João Figueira, o velho (Tesoureiro) e Jerónimo Mota (procurador). põe mãos à obra e começa com a 2° fase das obras de construção da Igreja em 1643, agora no seu interior.
Procedem ao forro do tecto, cuja despesa em madeira, pregos e oficiais, bem como outros custos pertencentes a dita obra, foi de 79$920 réis.
No mesmo ano deram de sinal para o azulejo, destinado a se “azulejar as paredes da mesma igreja, 70$808 réis.
Havia necessidade de se construir um coro para a actuação dos acompanhantes musicais nos actos litúrgicos. Em 1652 é feita encomenda das colunas que serviriam de suporte ao piso superior, pelas quais foi paga a importância do 20$000 réis. O madeiramento utilizado possivelmente foi adquirido, ou oferecido, pelos serviços alfandegários de Peniche, pois que todo aquele material ali aplicado fazia parte de barcos naufragados, cuja madeira, após o sou desmantelamento, era aproveitada para fins diversos.
Desde os primeiros tempos que todos se preocupavam com o recheio e património artístico da igreja e, nesse sentido, sempre que lhes foi possível, enriqueceram o interior do templo com as alfaias litúrgicas necessárias. Não foi esquecida a bandeira da Irmandade, para se fazer representar en solenidades civis e eclesiásticas, sendo um testemunho feliz do mais sagrada das missões e cruzadas.
Também era uso a sua presença quando iam a enterrar nas suas tumbas ou esquifes os pobres e os justiçados, assumindo igualmente o dever de conduzir à sua última jazida os cadáveres dos seus irmãos falecidos, acompanhando-os a Confraria processionalmente, de bandeira arvorada na frente do fúnebre préstito.
Na bandeira está representada a “Virgem do Manto”, a Virgem Maria com um manto amplamente aberto, sob o quai se recolhem o Papa, o Rei e a família real, prelados, sacerdotes e populares, isto é uma manifestação de toda a misericórdia de Nossa Senhora, numa atitude que entre nós se tornou familiar e emblemática.
Procedeu-se em 1656/57 à construção de uma sacristia. pois que havia necessidade de uma dependência resguardada onde os elementos dos actos litúrgicos se pudessem paramentar, bem como do seu apetrechamento com um, arcaz para nele se guardarem todos os paramentos o restantes tecidos sacros.
Mais tarde foram enriquecidas suas paredes com azulejos policromos de bom desenho, de cores vibrantes e com a colocação de 7 quadros, pintados sobre tábuas. por cima do referido móvel de guarda das alfaias litúrgicas, representando as sete Obras de Misericórdia (as corporais).
Em 1695 foi colocado o púlpito, com o seu acesso exterior, bem como a obra das banquetas (possivelmente e tribuna dos Mesários), havendo en cofre para essas despesas 9.397.000 réis, mais 10.000 réis que deu de esmola o Provedor, o Sargento-Mor Martinho de Sá.
Uma obra notável enalteceu bastante o exterior desta igreja. Trata-se da Torre do Relógio, mandada edificar pela Câmara Municipal com a concordância do Provedor, Padre Vicente Gorjão da Mota e dos restantes elementos que constituíam a Mesa. Teve o lançamento da primeira pedra em 31/7/1697.
Mas os melhoramentos na Igreja prosseguiram, em consonância com as boas consciências de que eram portadores os dirigentes da Irmandade, pois tudo aquilo que enriquecesse a casa de Deus, com todos os ornamentos possíveis, nunca era demais para que se tomasse mais bela a casa do Omnipotente.
Pretenderam forrar todo o tecto com quadros bíblicos alusivos a cenas ao novo testamento, o que, atendendo ao espaço a preencher e as medidas a adoptar, perfazia 55 telas, dispostas em 11 filas de 5 caixões cada.
Começaram por fazer as encomendas directas a pintores de arte a partir de 1677 e, satisfeitos os pedidos formulados, em 1705 estava todo o espaço ocupado.
De registar a boa vontade de alguns irmãos que comparticiparam nestas despesas com os seus donativos, custando cada quadro 7.000 reis. Foram eles: o capitão Francisco Monteiro Figueira com a oferta de 8 quadros, o Capitão António Luis com 10 e Filipe Mendes com 1.
Continuaram em plena actividade as obrigações contidas no Compromisso aprovado a 29/10/1629, graças aos doadores que ao longo dos anos contribuíram bastante para a sua continua extensão.
As cerimónias da Quaresma, em especial a Semana Santa ou “Endoenças”, estavam a cargo da Irmandade, o que incluía as procissões dos Passos -Ramos - Senhor da Cana Verde, bem como a do “Enterro do Senhor”, esta que começou em 1695 (até então fazia-se o descimento da cruz no pátio da Capela do Calvário sondo depositada a imagem no piso inferior daquele pequeno templo, no chamado “Sepulcro”, envolvido num lençol, até ao 3° dia da subida aos Céus, conforme as Escrituras).
Na mesma época (1692/95), foram substituídas as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora do Despacho, também conhecida pelo povo por “Senhora da Soledade” e a do Senhor utilizada para as cerimónias do descimento da cruz, por estarem bastante danificadas. Procedeu-se a uma nova aquisição, a título de compra, respectivamente, por 20.900 réis (as duas primeiras) e por 22.000 reis (a terceira).
Também, por se encontrar todo o madeirarnento do frontal da Capela-Mor em mau estado de conservação, em 26/4/1767, foi entregue a obra da sua total substituição ao entalhador Manuel Martins da Ribeira, residente na Lourinhã, trabalho que foi adjudicado por empreitada, pelo prazo de um ano e pela importância de 300.000 reis.
Compreendia a obra toda a talha e douramento, bem como as três capelas e mais todo o retábulo, tudo em madeira do pinhal de El-Rei ou de Flandres.
Poucos anos depois, em 1755, com e terrível terramoto de 1 de Novembre, a igreja e o Hospital sofreram grandes danos.
A aflição de povo foi tão grande que, debaixo dos seus tormentos, prometeram à Virgem uma procissão de acção de graças, a realizar anualmente, em comemoração daquele dia, por o castigo não ser ainda maior. Isto porque as águas não subiram mais além dos pés de Nossa Senhora do Despacho no seu altar. Estas cerimónias públicas no exterior chegaram até à implantação da República (5/10/1910).
Como acontece com tudo que não é eterno, as telas do tecto da igreja sofreram os efeitos do tempo e, assim, em 1812, foram restaurados pelo pintor de arte António José Rodrigues Raieta, natural de Braga, 3 dos quadros que ornavam o tecto e que se achavam em parte destruídos por grandes roturas.
Também António da Costa e Oliveira, em Julho de 1858, reformou parte dos quadros do referido tecto, trabalho que importou em 138.900 reis.
Ao longo dos séculos e até aos nossos dias, o edificio da Igreja deu sempre e maior apoio ao hospital que lhe ficava contiguo, possuindo até uma galeria no andar superior que permitia aos doentes internados assistir aos ofícios divinos. Foi utilizada como capela funerária e só em 1845, par força da Lei da Saúde de 26 de Novembro, deixaram de nela ser sepultados os irmãos falecidos. Já depois da publicação da referida Lei foi utilizado para enterramentos o pequeno logradouro que possuía a sul (espaço actualmente ajardinado e integrado na via pública).
Restam 2 pedras tumulares na parte interior da entrada principal daquele templo, cobrindo os restos mortais de Mesário Domingos Vaz Patinhas, falecido em 1640, e de Paulino Quaresma, esta datada de 1660.
Ali foram sepultados, possivelmente a seu pedido, em gestos de humildade para que toda a gente pisasse os seus restos mortais, au melhor dizendo lhes “passasse por cima”.
De entre as valores que enriquecem o seu património (e não é possível referir todos) são de salientar duas peças vindas do extinto Convento do Bom Jesus de Peniche, que fechou suas portas em 1834. Urna pia de água-benta, do século XVI, estilo manuelino, bem como um Tabernáculo colocado no lugar adequado.
Por muitos anos se realizaram naquele espaço, na época adequada, as cerimónias da Semana Santa, com algumas alterações, conforme a vontade dos homens.
Já muito próximo dos nossos tempos, em 1932, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia teve a honra de receber os restos mortais de D. Luis de Ataide, 3° Conde de Atouguia e Senhor de Peniche, que foi par duas vezes Vice Rei da India. Ali foram colocados num sarcófago mandado construir pela Câmara Municipal. Esta destacada figura da nossa história faleceu na India e, par sua manifestação de vontade, foi inicialmente sepultado no Convento de Bom Jesus de Peniche. Extinto o Convento foram as suas ossadas colocadas na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e daí trasladadas a 8/5/1932.
Atendendo à sua arquitectura e ao valor artistico do seu interior, este templo foi, ao abrigo do Decreto Lei n°181/70, de 28 de Abril, nos termos dos seus artigos 1° e 2°, por despacho ministerial, classificado cormo imóvel de interesse público.
Logo a seguir, nos termos do mesmo despacho, foi determinado que o Instituto José de Figueiredo enviasse uma sua brigada móvel a Peniche a fim de estudar in-loco as pinturas da Igreja, que se encontravam à beira do impossível para a sua restauração. Todos os quadros artísticos que cobrem o tecto foram então para restauro naquele Instituto, de onde regressaram depois de alguns anos de valioso trabalho de restauro.
Também a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais se preocupou com a degradação que a Igreja então apresentava e nela promoveu as obras de que este monumento estava a necessitar. Na década de 1980 foi substituída toda a cobertura e, porque se apresentava descolada grande parte da azulejaria que cobre as suas paredes, todos os azulejos da Igreja foram levantados e recolocados. O pavimento de madeira que a igreja possuía foi, na altura, substituído por tijoleira.
Em meados de 1984 estava tudo nos seus devidos lugares e todo o espaço da Igreja recuperada e pronto ao desempenho do seu culto divino. Ali se celebra a Eucaristia com regularidade, na quarta 5° feira de cada mês.
A beleza artística desta Igreja é bem difícil de descrever per palavras mas serão muito poucos os penichenses que não a conhecem.

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